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Para quem só tem um celular na mão, tudo na vida é "zap"

Enquanto usarmos a tecnologia como fornecedora de uma única ferramenta para todos os nossos problemas, nós a utilizaremos como um martelo que só serve para fixar pregos e que destrói qualquer outro objeto.


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Imagine as seguintes situações:


Situação 1. Você é um dos gestores de uma empresa e frequentemente faz reuniões com a sua equipe. Em um determinado momento, esta empresa determina que você só poderá fazer essas reuniões em uma movimentada praça pública com toda a equipe sentada a uma única grande mesa e sem utilizar nenhum objeto ou instrumento de apoio.


Situação 2. Você é um professor ou uma professora e ministra aulas para algumas turmas com cerca de 25 alunos cada. Em um determinado momento, o diretor de sua escola determina que você só poderá ministrar essas aulas em uma movimentada praça pública com todos os seus alunos sentados a uma única grande mesa e sem utilizar nenhum objeto ou instrumento de apoio.


Situação 3. Você é um vendedor ou uma vendedora de uma loja de eletrodomésticos. Em um determinado momento, o gerente de sua loja determina que você só poderá vender os seus produtos em uma movimentada praça pública com todos os seus potenciais clientes sentados a uma única grande mesa e sem utilizar nenhum objeto ou instrumento de apoio.


Parecem situações estranhas? Mas são situações análogas ao que estou começando a observar em minhas pesquisas e estudos de mudança de comportamento profissional das pessoas a partir do isolamento social necessário para conter a pandemia da covid-19. Li algumas matérias jornalísticas que muito me preocuparam. Em linhas gerais, elas abordam o estresse que alguns profissionais estão passando na transição de suas atividades presenciais, dos seus ambientes físicos de trabalho, para atividades virtuais, praticamente o único modo de continuar seus trabalhos em tempos de isolamento.


Mas a minha preocupação maior não está sobre o estresse desses profissionais, mas sim, o que está gerando esse estresse e que venho constatando na prática a partir dos contatos e das observações de pessoas ao meu (virtual) redor. Essas matérias jornalísticas, talvez por impossibilidades materiais ou desconhecimento mais profundo dos seus autores, tendem a colocar a tecnologia como a grande vilã desse estresse. Mas, lendo essas mesmas matérias e analisando mais profundamente, arrisco a dizer que a tecnologia não é a culpada, mas sim a forma como os profissionais a usam.


Nessas mesmas matérias, pude ler algumas histórias reais que, embora aparentemente inocentes, em mim provocaram grande choque. Li história de gestores que estão perdendo o controle de tantas reuniões e problemas debatidos e decididos em seu aplicativo Whatsapp. Li história de professores que estão à beira de um ataque de nervos por terem que conduzir os estudos de várias turmas com vários alunos em hercúleos grupos de Whatsapp. Li notícias de vendedores que, com suas lojas fechadas, tiveram que partir para a venda via Whatsapp e estão recebendo mais desaforos nas abordagens do que pedidos de vendas.


O que o Whatsapp tem a ver com o estresse dos profissionais e o que isso tem a ver com as situações imaginadas no início desse texto? Vamos por partes. Não estou criticando o Whatsapp, uma grande ferramenta de mensagens instantâneas que nos ajuda muito no mundo atual. Mas ele é um aplicativo de mensagens instantâneas, apenas isso. Nessa história, vejo-o como uma evidência da dificuldade que as pessoas estão tendo para adaptar as suas atividades profissionais ao mundo moderno e ao mundo virtual. O Whatsapp (ou qualquer outro aplicativo que estivesse em seu lugar nessa história) não é uma ferramenta inútil. Ela só não é útil para determinadas necessidades, não é a solução para tudo no mundo. Em outras palavras, não é a tecnologia, a vida no mundo virtual que está causando estresse aos profissionais. O que atrapalha é a escolha inadequada da ferramenta.


Neste ponto, é importante recorrer à Pierre Lévy no conceito da palavra “vitual”. “Na acepção filosófica, é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato. [...] Em filosofia, o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual [...] são apenas dois modos diferentes de realidade. Se a produção de árvore está na essência do grão, então a virtualidade da árvore é bastante real. [...] A árvore está virtualmente presente no grão.”


Talvez essa seja a origem mais remota da causa dos problemas de adaptação no trabalho remoto, no home-office, nas atividades virtuais, sejam lá quais forem os nomes adotados. O trabalho no “mundo vitual” não é um trabalho “no outro mundo”. É um trabalho no mesmo mundo, no nosso mundo, de forma diferente. Aqui retorno às situações fictícias do início do texto. Na analogia que faço, dou um único instrumento a diferentes atividades profissionais com diferentes características: uma grande mesa em uma movimentada praça pública. Certamente o gestor da situação 1 sentirá falta de um computador, de uma sala fechada, de um bloco de notas, de uma caneta, ficará incomodado com as pessoas que circulam na praça. Inevitavelmente o professor da situação 2 sentirá falta de uma lousa, de uma disposição melhor das cadeiras dos alunos, de um livro, terá suas aulas prejudicadas pelo barulho do público ao redor. Muito provavelmente o vendedor da situação 3 precisará de seus produtos para demonstrá-los, um ambiente mais confortável para oferecer aos clientes, uma calculadora para calcular parcelamentos e descontos. Uma mesa no centro de uma praça pública é inútil? Não, ela é útil para descansar, para conversar com os amigos, para namorar, para rezar em grupo, para contemplar o movimento. Mas ela não é útil para essas situações fictícias do início do texto. O que os profissionais estão fazendo em seu isolamento social e em sua futura e inevitável mudança para atividades virtuais, é tentar adaptar a tecnologia que está na sua zona de conforto. E aí eu coloco o Whatsapp como “vilão pedagógico” apenas, poderia ser qualquer outro aplicativo em um limitado domínio tecnológico de certos profissionais. Sabendo-se usar apenas o Whatsapp, em um isolamento social, tenta-se fazer tudo pelo popular “zap”.

Mas isso não é o correto, não é o adequado, não é eficiente, não é eficaz. Existem ferramentas tecnológicas desenvolvidas e adequadas para uma reunião on-line que substitui com muitas vantagens as reuniões presenciais. Existem ferramentas tecnológicas desenvolvidas exclusivamente para aulas no ambiente virtual, com recursos que não são ainda possíveis na maioria das salas de aula presenciais. Existem aplicativos de vendas on-line que organizam os contatos com clientes e facilitam imensamente a negociação de produtos e serviços a distância. Existem inúmeras ferramentas exclusivamente desenvolvidas ou facilmente adaptáveis para outras inúmeras atividades profissionais, empresariais, educacionais, governamentais, sociais, etc..


Quando tentamos fazer tudo na virtualidade, com uma única ferramenta tecnológica é como se tivéssemos que passar a fazer tudo na presencialidade apenas em uma mesa no centro de uma movimentada praça pública. Atrevo-me a dizer, sem querer ser antipático, mas pragmático, que o problema não está no “novo trabalho no mundo virtual” ou na tecnologia usada. O problema está em quem está trabalhando nesse “novo mundo” com a tecnologia inadequada. Primeiro porque o mundo virtual não é diferente do mundo presencial, conforme nos esclarece brilhantemente Lévy. Segundo que se não nos libertarmos da nossa zona de conforto tecnológica e não buscarmos as tecnologias mais adequadas para a nossa nova forma de trabalho virtual, acabaremos sentados sozinhos em uma mesa de uma praça pública fazendo o que dá para fazer e estressando-nos com o que não conseguimos fazer. Não entendendo que existem formas e ferramentas diferentes para diferentes atividades, faremos jus àquele antigo ditado: “para quem só tem um martelo na mão, tudo na vida é prego”.

1 comentario


carlosrj8267
carlosrj8267
04 may 2020

O texto me fez lembrar uma discussão em sala de aula, quando o professor perguntou quais eram os pontos positivos de uma guerra?


Alguns falaram que não havia lado bom nas guerras. Eu destaquei á inovação tecnológica, daí vieram outros pontos como alguns remédios, enfim.


Na pandemia de COVID-19 o lado positivo que vejo é a inovação no cenário de trabalho, o home office passou ser a melhor forma de trabalho atual.


Por falta de cultura e insegurança jurídica as empresas não aderiram à essa modalidade de trabalho, foi preciso ter uma "guerra" para que as empresas e pessoas se reiventassem.


Apesar de estarmos atrasados tecnologicamente com relação aos grandes países desenvolvidos, temos tecnologia para facilitar o nosso dia adia.


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