Diário do Coronavírus
- Alberto Alvarães
- 27 de mar. de 2020
- 7 min de leitura
Quando uma pessoa é obrigada a ficar de quarentena por causa da propagação de um vírus, muitas consequências podem surgir. Mas, se essas consequências são boas ou ruins, depende somente dela...

Querido diário,
São duas semanas da quarentena em minha casa por causa da pandemia do Coronavírus. No início eu achava que não suportaria a clausura, a falta das pessoas, a falta do shopping, do chopinho as sextas a noite, da academia de ginástica e do meu trabalho. Mas, hoje, começo a enxergar o outro lado do futuro sombrio que ainda nos aguarda. Embora não achasse possível até alguns dias, hoje vejo os benefícios que toda essa situação trouxe para mim e, acredito, para muitas outras pessoas.
Aprendi (ou reaprendi) coisas básicas que não fazia: aprendi como se lava as mãos, aprendi que é necessário lavar as mãos, aprendi que não posso tossir nem espirrar sem colocar a parte de dentro do cotovelo ou um guardanapo descartável para conter minha secreção. Aprendi que, quando chego da rua, não posso entrar com o calçado em casa antes de desinfetá-lo e aprendi que devo sempre limpar objetos que todos pegam frequentemente como maçanetas, chaves, janelas, bolsas, etc.. Aprendi também que devemos limpar diariamente o nosso aparelho celular. Percebi que não era somente por causa do vírus, mas também porque comecei a me tocar dos ambientes para onde eu os levo durante o meu dia e, nem assim, eu me preocupava em limpa-lo. Aprendi que todos os alimentos devem ser higienizados assim que chegam da rua. Não é só por causa do vírus, mas descobri ser inapropriado coloca-los diretamente na geladeira sem saber das suas condições de limpeza e dos ardilosos bichinhos que poderiam sair deles e atacar a minha torta de limão. Aprendi que demais produtos como enlatados e empacotados também devem ser higienizados. Só um vírus para me fazer ver que não sei quem tocou nesses produtos desde a sua produção até o momento do pagamento de minha compra no supermercado. Aprendi que objetos de uso pessoal também precisam ser limpos frequentemente: carteiras, chaves, canetas, cartões de crédito, óculos, cintos, bonés, brincos, anéis, pulseiras, relógios, etc.. Escondidos nesses objetos podemos existir milhões de bactérias, vírus e outros bichos com quem não simpatizo. Por consequência, aprendi que devo lavar as mãos (e lavar bem) sempre que for fazer xixi ou outra coisa no banheiro. Descobri que isso não é só para mim, é para o bem das outas pessoas que pego na mão, beijo, abraço e com quem até compartilho alimentos. No embalo e com mais tempo para estudar durante a quarentena, descobri que a esponja da pia deve ser trocada regularmente e que não devemos deixar restos de comida nela entre uma lavagem e outra. Descobri que compartilhar utensílios como copo, talheres e pratos não é uma prova de proximidade e de confiança. É um risco de contrair uma ou mais das inúmeras doenças que podem estar em uma pessoa e, talvez, só se manifeste na outra. Descobri que esse papo de não se importar que meu filho coma comida que caiu no chão sob o argumento que “é para adquirir anticorpos” não é uma prova de “conhecimento paterno implícito”, é uma prova de falta de amor. Descobri que os tapetes devem ser batidos frequentemente, pois o perigo está escondido entre os pelos. Ele sempre esteve lá eu só varria, literalmente, para baixo do tapete. Descobri que meu gatinho é muito limpinho, mas sempre depois de brincar com ele, devo lavar as mãos. Ele não é sujo, é apenas um gato. E como qualquer animal, por mais que tenhamos cuidado, apresenta perigos para nós humanos. Aprendi que o volante a alavanca de câmbio e outras peças que manuseio em meu carro devem ser limpos sempre que vou utilizá-lo. Eu me toquei disso quando pensei do quanto levo para dentro dele após uma compra no supermercado, após visitar um parente no hospital ou após alguém que não conheço manobra-lo. Tudo isso, depois eu levo para a minha casa, para o meu lar, para a minha família. Aliás, falando em supermercado, descobri que aqueles lavatórios que ficam nas feiras do supermercado não são coisas de “pessoas frescas”. São coisas de pessoas conscientes. Descobri que nos botões dos elevadores, nas maçanetas de portas de acesso público, nos muros nos quais me encosto, nos postes em que me apoio para amarrar o cadarço do sapato, nas mesas e cadeiras dos restaurantes, nos balcões de atendimento, nos caixas eletrônicos, nos carrinhos de supermercado, nos interfones que toco, nos telefones públicos que uso, nos bancos da praça, nos livros que consulto nas bibliotecas, nas canetas que pego emprestado, em todos os lugares, existem bactérias, vírus e sei lá mais o quê desses bichos. Descobri que se preocupar com isso tudo não é histeria. Histeria é não se prevenir com uma esterilização ou uma boa lavada de mãos ou um banho quando chegar em casa. Descobri que roupas são para serem lavadas frequentemente. Descobri que quando saímos com uma calça ou uma camisa na rua e guardamos para o dia seguinte só porque fomos na esquina e voltamos, estamos guardando muitas coisas invisíveis que se depositaram nessas peças pelo simples fato de caminharmos com ela. Talvez alguns desses inimigos invisíveis tenham sido depositados pela nossa própria pele ou pelas secreções que temos naturalmente.
Ah, caro diário, como eu aprendi e reaprendi nesses dias. Mas estas coisas que lhe falei até agora, são coisas básicas que um dia aprendemos com alguém, mas as desprezamos por preguiça, desleixo ou irresponsabilidade conosco e com os outros. Eu aprendi ainda muito mais. E essas aprendi mesmo, eu não sabia...
Não tinha a menor ideia dos benefícios que podemos ter quando temos que ficar um pouco mais em casa. Aprendi que a mesma tecnologia que nos conecta em tempo real por meio de inúmeras mensagens de redes sociais e aplicativos de comunicação, algumas úteis, outras fúteis, outras mentirosas, outras maldosas, na realidade não nos conecta socialmente. Prova disso é que o termo técnico utilizado para a nossa quarentena é “isolamento social”. Aprendi, então, que tenho tecnologia para me conectar à sociedade, mas a uso apenas para compartilhar mensagens duvidosas, postar centenas de “kkkk” diariamente, expressar meu ódio ou a vida feliz que finjo ter por traz de selfies de rosto maquiado, de sorriso forçado ou biquinho horroroso com fundos lindos que, geralmente, não me pertence. Descobri que uso a tecnologia de redes sociais não para estar e interagir na sociedade, mas para criticar, agredir e desprezar e mentir para essa sociedade, como se eu estivesse sempre em um patamar superior a todos, como se as redes sociais em aplicativos que frequento fosse um mundo paralelo e não o meu mundo, o mundo da sociedade, o mundo que eu defino por meio de minhas atitudes. Descobri muitas outras coisas. Descobri que tenho mais opções a fazer na tecnologia a disposição além dos frenéticos “zap” que respondo até nos momentos de concentração no banheiro, muitas vezes com respostas semelhantes ao produto entregue nesse ambiente. Descobri que posso fazer cursos gratuitamente, descobri que tenho amigos que fazem “lives” cantando e tocando instrumentos, descobri o talento desses amigos e a sua bondade de compartilhar esses momentos comigo, na minha mesa de jantar com a minha família. Fiz reuniões de trabalho por teleconferência, dei aulas para os meus alunos usando salas de aula virtuais, criei cursos da minha área para preencher o tempo de quem precisa. Foi tanta coisa boa que descobri nesse ambiente virtual que saí de vários grupos de “zap” e deixei de seguir várias páginas de temas boçais no Facebook. Descobri quanto tempo eu desperdiçava nessas coisas todos os dias antes da quarentena, dias esses que, ao final, sempre reclamava que não tinha tempo para nada. Descobri que não preciso fazer exercícios somente na academia, é muito mais barato, rápido e gostoso me exercitar todos os dias na varanda de minha casa que usava apenas para guardar caixas de bagulhos. Aliás, descobri que o meu tempo inútil diário que usava compartilhando fakenews no “zap” e rolando por horas a tela de meu Facebook, eu poderia utilizar arrumando as minhas coisas espalhadas, limpar a minha casa, organizar meus documentos, brincar mais com meu gato (lavando as mãos depois), assistir um bom filme, ler um bom livro, consertar aquele aquela torneira que vazava há meses, trocar aquela lâmpada queimada desde o Natal, orar, acender uma vela e observar o quão bonita é a sua chama. Agora consigo fazer isso tudo. Estar nesse isolamento social em casa, me mostrou que realmente estava isolado do meu principal grupo social: a família. Agora posso brincar mais com meus filhos, olhar mais tempo para o rosto de minha esposa e ver o quanto ela é linda, posso ver retratos antigos, emocionar-me com a saudade boa dos que foram e rir com as imagens engraçadas do passado. Posso cantar junto com eles, podemos contar piadas, podemos ler histórias juntos, podemos fazer as pazes, podemos nos perdoar, podemos rezar juntos pelos que contraíram o vírus e pelos profissionais que heroicamente estão batalhando pela cura e pela prevenção da doença que ele provoca. Conheci meus vizinhos, compartilhei com eles o meu dedetizador de calçados que deixei no corredor do andar, ajudei idosos do meu prédio que nem sabia que eram meus vizinhos. Aplaudi forte, muito forte mesmo, para os lixeiros que, heroica e solitariamente recolhiam o lixo de minha deserta rua as onze horas da noite. Fiquei feliz em vê-los acenando para mim agradecendo como se fosse a primeira vez que alguém os agradeceu por desempenharem uma atividade tão nobre quanto a dos enfermeiros, médicos, motoristas, entregadores de mercadorias, bombeiros, policiais, porteiros, vigias e inúmeras outras profissões que não podem parar, pois são necessárias para o nosso país não parar, para que o combate à doença nunca cesse.
Sabe, diário, acho que a nossa sociedade, o nosso Brasil, ainda vai sofrer muito com essa doença. Quero, sinceramente, que isso passe logo, que possamos sair de casa quando for seguro, voltar a nossa vida normal. Quando isso for possível, não quero nunca mais saber nem passar por uma doença dessas. Quero que as consequências econômicas, educacionais, de saúde e sociais sejam, o mais rapidamente possível, contornadas. Mas, do fundo do meu coração, todas essas consequências que coloquei aqui para você hoje, que estou sentindo, vivendo, aproveitando, ah... essas eu não quero que remédio nenhum as tire de minha vida...
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